18 maio “O novo normal: o que mudou com a pandemia”, por Clotilde Perez para Revista Casa & Jardim
Passar noite e dia dentro de casa, dia após dia, transformando o lar em local de trabalho, estudo, lazer, ginástica, restaurante…, não é nada normal. Nossas casas não estavam preparadas para tamanho encargo e as adaptações foram feitas no improviso nervoso que a situação impunha. Crianças sem ir à escola, pais que saem para trabalhar correndo risco de contaminação, pais que ficam em casa porque perderam seus empregos, pais e mães exaustos porque estão em home office e adicionaram todo o trabalho doméstico à sua rotina. Isso não é normal.
Passar álcool 70 em embalagens ou dar banhos nos produtos que chegam de fora ou ainda colocar no sol para eliminar o risco de contaminação. Isto está bem longe do normal. Trabalhar horas diante de telas, reuniões sem fim mediadas pelos softwares de videoconferência, apresentações de projetos sem a menor condição de que sirvam para alguma coisa, também não é normal. Encontrar familiares e amigos sem abraçá-los, contentando-se com suas imagens nem sempre nítidas e vozes entrecortadas ao embalo das oscilações da internet, não, isso não é normal. Estarrecer-se com a publicidade demagoga e empresários desumanos e oportunistas, ofertas de produtos que não iremos usar e que perderam o sentido, nem de longe isso é normal.
Aguardar atentamente as informações diárias sobre como a pandemia avança no mundo, países mais atingidos, políticas públicas adotadas, reações sociais mundo a fora… No Brasil, quantos contaminados, quantos internados, quantos mortos. Ler sobre as formas de contaminação, aprender a usar máscara, luvas, álcool gel, incorporar a lavagem obsessiva das mãos, isso não é normal. Acompanhar a esquizofrenia do discurso público, saber quem caiu e quem assumiu, fazer isolamento social e acreditar na ciência ou na #obrasilnãopodeparar? O normal está bem longe. Hospitais de campanha, containers frigoríficos, covas e enterros coletivos, caixões e túmulos, o convívio com a realidade e a estética da morte diariamente, isso, definitivamente, não é normal. Esperar, sem saber bem o quê e quando, não pode ser normal.
Normal é um atributo para o que é regular, usual, que vai acontecendo sem esforço. Também se conecta com o que é comum e rotineiro. Mas, a associação mais significativa e compreensível é que comum é o que é natural, inerente e próprio. Desde quando estar isolado, impedido de contato físico, sem saber o que pode acontecer e com medo de adoecer e morrer é natural? Estamos em plena contingência, na exceção e na pressão. Não estamos vivendo um novo normal. Pulsa o desejo de retorno a nossa condição anterior, quiçá não em sua totalidade, mas a vida no encontro com o outro, no trabalho, no estudo, na mobilidade própria da contemporaneidade.
A reflexão sobre o que se manterá e o que vai mudar “pós pandemia”, ainda que esse “pós” esteja completamente impreciso, é pertinente. Quais comportamentos e valores ficarão? Será mesmo que retomaremos a valorização das ciências, das universidades de pesquisa e do Estado na sua face humana e competente, como o SUS, por exemplo? Voltaremos a crer nas institucionais tradicionais de mídia, com sua história e valorização da informação fundamentada e crível e desconfiaremos das frágeis redes de Whatsapp e assemelhados com a enxurrada de fakenews nefastas e mensagens para o riso idiotizado? Talvez tenhamos um “novo normal”, mas para isso deveríamos estar construindo esse caminho, no entanto, estamos tomados pelo medo do vírus e pelo medo de não ter emprego. O medo paralisa e no máximo nos faz querer o que perdemos, e isso “já é muito”. Novo normal, bem longe disso.
*Coluna publicada originalmente na Revista Casa&Jardim, no dia 13 de maio de 2020
Foto: Ilustração Sirio Braz/Editora Globo