06 ago Língua antropomorfizada para ser protetora: sensibilidade da Coca-Cola na compreensão do jovem de hoje
por Clotilde Perez
A nova campanha de Coca-Cola criada pela agência Wieden + Kennedy de Londres para o Reino Unido, tem a língua como protagonista e isso é muito. Não é “só” sabor, é muito mais. O fetichismo de Coca-cola e a busca de desprender-se da sua condição de mercadoria na direção de tornar-se sujeito sempre esteve presente em várias de suas ações ao longo de décadas, mas agora com a humanização da língua, emblema máximo do sabor, é a execução mais espetacular já realizada pela marca por que buscou integrar outros sentidos. O filme é primoroso na forma e no conteúdo. É atual, apresenta vários temas contemporâneos, toca em questões complexas que o jovem está vivendo, seus desafios e dificuldades, daí a importância do incentivo, mas também da proteção – aliás, esse é o papel central da língua, ser acolhedora, protetora, prover segurança. O sabor evidentemente é fundamental, mas o incentivo e o acolhimento se sobrepõem a tudo e é aí que está a genialidade deste filme. Conseguiu aliar a estratégia central da marca (taste the feeling), com o que é mais importante para as pessoas hoje: sentir-se acolhido. Esse caminho só é possível quando a marca se dirige estrategicamente em direção ao humano, fetichizando-se e é na estética do orgânico, e a língua, no contexto do sabor, é especialmente perfeita, que a possibilidade de realização se dá.
Analisemos a sequência do filme. Uma jovem dá um generoso gole de Coca-cola e só após esse gole, uma língua passa a ter vida e é liberada atropomorfizando-se, tomando as ruas de uma cidade idealizada em direção a uma praia cálida e envolvente. Apesar de hiperbólica, a língua não é monstruosa, ao contrário, sem face, mas com movimentos orgânicos, promove graça e leveza. Chegando à praia, envolve a jovem (a que bebeu o primeiro gole) e a acompanha, juntamente com outros jovens em direção ao mar e ao surf e se posiciona acima deles, em nítido acolhimento. Rapidamente a câmera corta para a praia com o pôr do sol e lá está a língua hiperbólica ao lado da moça protegendo-a, sempre ao seu lado, e em um rápido movimento, a língua penetra na garrafa de Coca-cola, surgindo “do outro lado” em uma estação de esqui, agora incentivando (a mesma jovem) a lançar-se na pista de esqui, empurrando-a. Sempre incentivando, mas indo junto, a lado e protegendo-a. Momento de graça quando a língua gruda na garrafa também hiperbólica de Coca-cola congelada e a jovem a puxa em um movimento brusco, fazendo-a cair para trás juntamente com a língua, provocando um imenso riso de satisfação, satisfação pelo desafio realizado.
Na sequência a ambientação é agora em uma sala de cinema. A jovem supostamente assiste a um filme, a língua sentada ao seu lado comendo pipoca se assusta com o barulhinho de abertura da latinha de Coca-cola e derruba as pipocas para todo o lado e uma gargalhada fecha a cena; descontração, graça, cumplicidade – a língua amiga, sempre junto. A abertura da cena seguinte é a entrada da jovem em uma casa e a sua visão de uma festa com amigos e entre eles, claro, a língua. A sugestão é de uma festa surpresa e pela centralidade da língua (inclusive com chapeuzinho de festa e pela angulação e tomadas da câmera que a protagonizam) a ideia é que a própria língua organizou a balada surpresa. Muita música, descontração e dança, levando os presentes a um ambiente de múltiplas cores e performances, com destaque para um outro rapaz fazendo piercing na língua e o semblante de surpresa e admiração da jovem. Diante da cena, a língua foge com medo, momento sublime de humanização e graça. Mas, em seguida, novamente há a atuação da língua hiperbólica que a conduz diretamente a uma queda livre de um bungee jump. Novamente a língua a leva e a acompanha na aventura. Incentiva, provoca, mas está sempre junto.
Em um movimento acelerado, simulando um flashback, cenas anteriormente vividas ou imaginadas, mas sentidas, não importa, a jovem em close, surge afastando a garrafa de Coca-cola da boca, com olhar que inicia baixo, mas que se eleva em direção ao horizonte, revelando imensa satisfação, sorriso leve no rosto, na certeza de que todo o vivido, imaginado, sentido, foi proporcionado por aqueles instantes entre o gole de Coca-cola que abre o filme e o exato momento que afasta a garrafa da sua boca, encerrando-o. A magia cheia de graça é a apoteose com a uma língua gráfica que sai da boca da jovem e reconstrói a logotipia de Coca-cola, trazendo nova figuratividade à primeira letra C da marca, com uma um C antropomorfizado em língua, na melhor representação do “Taste the feeling”. O que temos de melhor no antropo é certamente a possibilidade do acolhimento e a Coca-cola (+ agência, certamente) percebeu essa falta e fez o que sabe fazer, um filme que revela pesquisa, planejamento, criação e execução magistrais.